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um breve esclarecimento

em seu interessante artigo "por uma nova tradução de utopia", aqui, márcio meirelles gouvêa júnior comenta que o conjunto de "imperfeições, omissões, confusões ou falhas, grandes ou pequenas" das traduções anteriores foi o motivo decisivo que o levou a empreender uma nova tradução.

para ilustrar sua afirmação, detém-se particularmente sobre a de luiz de andrade, publicada pela athena editora em 1937:

"O texto, cuja orelha do livro permite uma frágil e imprecisa suposição de que talvez tenha sido traduzido originalmente do latim, sem contudo qualquer comprovação ou indicação precisa seja do autor seja do editor, parece ter tido como escopo tradutório a tentativa de facilitar ao máximo a versão final para o leitor, de tal maneira que à concisão e à elegância do texto latino de More corresponderam muitas vezes as verborrágicas paráfrases explicativas no português da virada do século XX, dotadas de uma coloquialidade de certo modo estranha ao texto original. Da mesma forma, percebe-se a desconstrução das estruturas sintáticas latinas do original humanista, como no caso dos diálogos, transpostos de modo direto e destacado dos parágrafos que originariamente os contêm. Ademais, a falta de estrita literalidade do texto vertido para o português dificulta sobremaneira a consulta ao original."

aqui cabe um breve esclarecimento: a tradução de luiz de andrade de 1937 - longe de pretender qualquer relação direta com o original neolatino - se baseia na tradução francesa de victor stouvenel, de 1842 (ambas, aliás, ainda em circulação, com incontáveis reedições).


assim, ao se apontarem falhas - máxima facilitação do texto, paráfrases verborrágicas, coloquialidade descabida, alteração das estruturas sintáticas originais etc. -, seria talvez mais pertinente dirigi-las a que de direito: neste caso, à tradução de stouvenel, não à de luiz de andrade, que se limitou a segui-la com grande fidelidade.

segue-se um pequeno trecho a título de exemplo:

1. Victor Stouvenel:
Raphaël Hythlodée (le premier de ces noms est celui de sa famille) connaît assez bien le latin, et possède le grec en perfection. L’étude de la philosophie, à laquelle il s’est exclusivement voué, lui a fait cultiver la langue d’Athènes, de préférence à celle de Rome. Aussi, sur des sujets quelque peu importants ne vous citera-t-il que des passages de Sénèque et de Cicéron. Le Portugal est son pays. Jeune encore, il abandonna son patrimoine à ses frères ; et dévoré de la passion de courir le monde, il s’attacha à la personne et à la fortune d’Améric Vespuce. Il n’a pas quitté d’un instant ce grand navigateur, pendant les trois derniers des quatre voyages dont on lit partout aujourd’hui la relation. Mais il ne revint pas en Europe avec lui. Améric, cédant à ses vives instances, lui accorda de faire partie des vingt-quatre qui restèrent au fond de la Nouvelle-Castille. Il fut donc laissé sur ce rivage, suivant son désir ; car notre homme ne craint pas la mort sur la terre étrangère ; il tient peu à l’honneur de pourrir dans un tombeau ; et souvent il répète cet apophtegme : « Le cadavre sans sépulture a le ciel pour linceul ; partout il y a un chemin pour aller à Dieu. » Ce caractère aventureux pouvait lui devenir fatal, si la Providence divine ne l’eût protégé. Quoi qu’il en soit, après le départ de Vespuce, il parcourut avec cinq Castillans une foule de contrées, débarqua à Taprobane comme par miracle, et de là parvint à Calicut, où il trouva des vaisseaux portugais qui le ramenèrent dans son pays, contre toute espérance.

2. Luiz de Andrade:
Rafael Hitlodeu (o primeiro destes nomes é o de sua família) conhece bastante bem o latim e domina o grego com perfeição. O estudo da filosofia ao qual se devotou exclusivamente, fe-lo cultivar a língua de Atenas de preferência à de Roma. E, por isso, sobre assuntos de alguma importância, só vos citará passagens de Sêneca e de Cícero. Portugal é o seu país. Jovem ainda, abandonou seu cabedal aos irmãos; e, devorado pela paixão de correr mundo, amarrou-se à pessoa e à fortuna de Américo Vespúcio. Não deixou por um só instante este grande navegador, durante as três das quatro últimas viagens, cuja narrativa se lê hoje em todo o mundo. Porém, não voltou para a Europa com ele. Américo, cedendo aos seus insistentes pedidos, lhe concedeu fazer parte dos vinte e quatro que ficaram nos confins da Nova Castela. Foi, então, conforme seu desejo, largado nessa margem; pois, o nosso homem não teme a morte em terra estrangeira; pouco se lhe dá a honra de apodrecer numa sepultura; e gosta de repetir este apotegma: "O cadáver sem sepultura tem o céu por mortalha; há por toda parte caminho para chegar a Deus". Este caráter aventureiro podia ter-lhe sido fatal, se a Providência divina não o tivesse protegido. Como quer que fosse, depois da partida de Vespúcio ele percorreu, com cinco castelhanos, uma multidão de países, desembarcou em Taprobana, como por milagre, e daí chegou em Calicut, onde encontrou navios portugueses que o reconduziram ao seu país, contra todas as expectativas.

as duas traduções são de fácil acesso, disponíveis respectivamente aqui (stouvenel) e aqui (andrade).

observação final: quanto à tradição tradutória francesa, constitui um enorme e complexo capítulo à parte, que escapa a nosso tema imediato. mas certamente a versão moreana de stouvenel faz parte integrante de tal tradição.